O Julgamento de Paris: o dia em que a Califórnia virou o mundo do vinho de cabeça pra baixo
- Raffael Figlarz
- 23 de jul.
- 3 min de leitura

Se hoje a gente fala com naturalidade sobre vinhos americanos, argentinos, australianos e até brasileiros no topo da cadeia do bom gosto, pode ter certeza: isso só aconteceu porque, em 1976, um britânico audacioso resolveu fazer história. Literalmente.
Essa é a história real (e com gosto de roteiro de filme!) de um concurso de vinhos que ninguém levou muito a sério no início, mas que acabou mudando o mundo do vinho para sempre.
O cenário: um mundo dominado pela França
Durante séculos, a França foi a referência suprema em vinhos finos. Os rótulos de Bordeaux e Borgonha eram considerados inigualáveis, e os franceses tinham um certo orgulho – para não dizer arrogância – quanto à sua superioridade vitivinícola. Vinhos de fora da Europa? Eram vistos como exóticos, curiosos... e, para muitos especialistas, inferiores.
Do outro lado do oceano, porém, uma revolução silenciosa estava em andamento: a Califórnia, nos Estados Unidos, começava a produzir vinhos com cada vez mais qualidade e seriedade. Mas faltava reconhecimento. Faltava prestígio.
O idealizad

or: Steven Spurrier, o britânico encrenqueiro
Quem decidiu cutucar essa colmeia foi Steven Spurrier, um jovem comerciante de vinhos britânico, radicado em Paris. Ele era dono da Académie du Vin, uma escola de vinhos bastante respeitada, e também da Caves de la Madeleine, uma loja especializada em rótulos franceses.
Mesmo sendo um amante dos vinhos da França, Spurrier ficou intrigado com o que vinha acontecendo na Califórnia. Por curiosidade (e com um pouco de espírito provocador), resolveu viajar até o Vale do Napa e visitar vinícolas locais. E se surpreendeu. Muito.
De volta a Paris, teve uma ideia ousada: realizar uma degustação às cegas, comparando vinhos franceses consagrados com californianos “desconhecidos”. A ideia era fazer isso durante as comemorações do bicentenário da independência dos EUA.
Spoiler: os franceses toparam achando que seria uma vitória fácil. Não imaginavam o que viria...
O evento: taças, tensão e um júri de peso
O "Julgamento de Paris" aconteceu em 24 de maio de 1976, no luxuoso hotel InterContinental, em Paris. O júri era composto por nove especialistas franceses, entre críticos, sommeliers e enólogos, nomes de peso como:
Pierre Tari, proprietário do Château Giscours (Margaux)
Odette Kahn, editora da famosa revista La Revue du Vin de France
Jean-Claude Vrinat, dono do restaurante três estrelas Taillevent
Christian Vannequé, sommelier-chefe do La Tour d’Argent
Entre os organizadores estavam Spurrier e sua parceira de negócios, Patricia Gallagher, da Académie du Vin.
Foram selecionados 10 vinhos brancos (Chardonnay) e 10 vinhos tintos (Cabernet Sauvignon), metade da França, metade da Califórnia. E o mais importante: degustação às cegas. Os jurados não sabiam o que estavam provando.
O resultado: um terremoto no mundo do vinho

Quando as notas foram somadas, o choque foi geral. Os vinhos californianos derrotaram os franceses nas duas categorias!
Branco vencedor:Chateau Montelena Chardonnay 1973 (Califórnia)Superou grandes nomes da Borgonha, como o Meursault Charmes Roulot.

Tinto vencedor:Stag’s Leap Wine Cellars Cabernet Sauvignon 1973 (Califórnia)Passou à frente de ícones de Bordeaux, como Château Mouton-Rothschild e Château Haut-Brion.
Os jurados ficaram incrédulos. Odette Kahn, por exemplo, chegou a protestar, exigindo de volta sua ficha de pontuação (Spurrier se recusou). Muitos tentaram minimizar o resultado. Mas já era tarde: o mundo tinha testemunhado uma revolução.
As consequências: o Novo Mundo entra no mapa
O Julgamento de Paris não foi apenas uma vitória simbólica. Ele:
Colocou a Califórnia no mapa mundial do vinho, mostrando que terroirs fora da Europa também podiam produzir vinhos excepcionais.
Abriu espaço para outras regiões do "Novo Stag´s LeapMundo", como Austrália, Chile, Argentina, África do Sul e Brasil.
Desmistificou a superioridade inquestionável dos vinhos franceses, promovendo uma visão mais aberta, democrática e sensorial.
Depois disso, produtores do mundo todo passaram a se inspirar no modelo californiano: inovação, tecnologia, menos tradição, mais ousadia. E o consumidor ganhou com isso.
Virou filme: Bottle Shock
Essa história incrível chegou até Hollywood. Em 2008, foi lançado o filme "Bottle Shock", estrelado por Alan Rickman (o eterno Snape de Harry Potter), no papel de Steven Spurrier.
O longa é divertido e retrata os bastidores do julgamento com uma boa dose de licença poética, mostrando também o drama e a paixão dos vinicultores californianos que lutavam pelo seu lugar ao sol.
Hoje, o Julgamento de Paris é visto como um dos momentos mais importantes da história moderna do vinho. Foi um tapa de luva na arrogância do velho mundo e um brinde à diversidade, à qualidade e à surpresa.
Mais do que vencer um concurso, os vinhos da Califórnia abriram uma porta que nunca mais se fechou. E graças a isso, hoje temos vinhos incríveis produzidos em todos os cantos do planeta — e um paladar global muito mais aberto e curioso.
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